Viajante do Tempo

Gosto de contar essa história para minhas turmas de Língua Brasileira e Literatura, geralmente na primeira aula. É meu argumento para provar o poder das palavras, que através delas podemos tudo, inclusive viajar no tempo.

Anos atrás eu estava limpando a garagem de casa, então recém comprada, arredando armários velhos e retirando teias de aranha, quando vi ela caída, coberta de poeira. Era uma caixa de tamanho médio, dessas que utilizavam antigamente, de papelão. Não tinha como identificar direito do que se tratava, então passei um pano úmido na lateral e consegui ler claramente “Ventilador Arno Silence Force 40 cm”.

Coisas antigas, amo coisas antigas. Quando garoto vi um ventilador ainda funcionando, na casa dos meus tios. Não lembro direito quando foi que eles desapareceram. Os ventiladores, no caso. Meus tios eu sei quando desapareceram. Agora eu tinha um desses em minhas mãos. Item de colecionador. Com o coração aos pulos, busquei rapidamente um canivete para abrir o pacote. 

A caixa estava plastificada, várias vezes, como se alguém quisesse realmente que ela durasse muito tempo. Passei o fio da navalha bem no centro da parte superior, com cuidado, para manter a caixa intacta e não estragar o Arno que me esperava. Abri a tampa e fui surpreendido. Não era um ventilador. Eram papéis, fotografias impressas, aparelhos eletrônicos e pequenos objetos antigos do início do Século. Todos em excelente estado, limpos, com bilhetes grudados na parte inferior de cada um. 



Eu que já estava feliz pelo fato de encontrar um ventilador, agora estava em júbilo por achar muito mais do que um obsoleto fazedor de vento. Eu havia encontrado memórias, uma caixa de memórias de mais de setenta anos. Fui tirando cada coisa com cuidado, uma por uma, enfileirando no chão toda aquela história e tentando descobrir de quem eram, qual a ligação dos nomes que apareciam, se todos haviam morado naquela casa, como viveram, quando morreram. 

Nos pés de um papai noel a frase “natal de vinte e três, fui feliz”. No copo plástico com o desenho do Mickey Mouse “presente da Camila, verão de vinte e sete”. Na camiseta amarela da Seleção Brasileira, grafado em letras garrafais “Bolsonaro, enfim morto. Vinte e um”.

Emocionado com tudo aquilo cheguei ao pacote de cartas. Eram dez maços de papéis, envoltos em sacos plásticos e cuidadosamente organizados. O primeiro saco tinha como título “Relatos da Quarentena, Vinte Vinte”. E a primeira carta, assinada por Avelino Maicá Neto, dizia exatamente assim: 

“Esperando o Tempo Passar eu Me Perdi no Tempo

Sete graus em Porto Alegre.

Já se vai metade de julho.

É o que me diz o calendário.

Não fosse ele, não saberia distinguir entre semana passada e noventa e nove.

O tempo certamente perdeu qualquer sentido.

Entre o piscar de olhos do acordar e do dormir, os mesmos momentos de ontem e anteontem.

Como amanhã pode ser quarta-feira, se hoje é quarta-feira, tão igualzinha quarta-feira passada?

Entre quartas, um ano. Neste ano, um segundo.

Eu mal acordei em abril e já era junho, julho, agosto.

E como demora. E como demora pra tudo isso passar. ”

 

E a segunda carta que peguei, continuava:

 “Primavera chegou e com ela o calor.

As estradas estão lotadas com a pressa do viver.

O vírus se espalha, dança no meio de rostos sem máscara.

Invade corpos que teimam em aglomerar.

Gosto de ver o desapego à existência dessa geração que maratona séries televisivas.

Todos aceleram para chegar ao fim. ”


Reli muitas vezes toda as cartas. Através delas eu viajei no tempo. 

Esse é o poder das palavras.

Comentários

Marcelo Inverso disse…
Será que o agora não é importante por isso?
Criar histórias memoráveis para o nosso futuro, nostálgico futuro...
^.^